quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Ser criança

Uma das coisas boas de cuidarmos de uma criança, ou mais; é que nós já fomos crianças. Mas essa é também a parte complicada.
Quando chegamos a adultos a parte criança que ainda nos habita, nem sempre foi saudávelmente cuidada, amada e aceite ao longo do nosso crescimento.
Em grande medida todo o processo de crescimento passa pela anulação e estrangulamento dessa criança que fomos; de forma a que um adulto fosse surgindo dessas formas esculpidas, numa espécie de adaptação da criança às necessidades de um mundo que já existia muito antes de ela ser sequer projecto.


Persiste a dúvida se o fazemos para o bem dos nossos filhos, ou porque achamos que tem de ser, ou porque não conseguimos nem sabemos fazer de outra forma.


Certo é que a criança que fomos, vive cá dentro, sob a forma de rebeldias e condicionamentos, de frescura, espontaneidade, mas também sob a forma de carência e imaturidade.
Quando nos esquecemos do que é ser criança, perdemos a capacidade empática de nos colocarmos no lugar dela e da dificuldade que possa ter em compreender um sistema de regras, condutas, possibilidades, exigências e formas de estar e de ser que muitas vezes ainda nos violentam a nós adultos, quanto mais a uma criança.


Além disso está sobejamente estudada a importância dos primeiros 6 anos na edificação da personalidade, ou na sua profunda desestruturação conforme o caso.
É quando a criança ainda não sabe falar, nem percebe ao certo o que dizemos, que tudo isto se constroi a uma velocidades espantosa.
Todo esse tempo achamos que o que temos a fazer é praticamente apenas orgânico, como dar de comer, por a dormir, dar banho e cuidar de alguma situação de saúde que surja.
Ou seja a nossa relação com o bebé é sobretudo corporal.  E no entanto temos de entender que um bebé humano tem necessidades e capacidades muito mais complexas do que uma qualquer outra cria, com um sistema cognitivo bem mais simples, e para quem o sustento, o sono e cuidados básicos de saúde chegam perfeitamente.
O bebé humano, rapidamente cresce e vai juntando um conjunto de ferramentas que podem servir para o tornar exponencialmente mais forte, mais capaz e mais apto a dar o melhor de si; ou pode ir juntando ferramentas educativas que o normalizam como fazemos com as maçãs e as meloas, que se pretendem todas iguais, da mesma cor, mesmo que para isso elas não recebam sol nem o sabor da terra, e sejam de imediato encarreiradas na mesma máquina produtiva que nos põe, mesmo a nós adultos, tão distantes de nós mesmos, e quantas vezes tão profundamente infelizes.


Dos 0 aos 6 não conta tanto o que se diz, como de resto, se calhar acontece para o resto da vida.
O bebé lê olhos, tons de voz, lê sentimentos básicos, lê temperamentos e atmosferas emocionais.
O bebé lê toque, timbre, lê presença ou ausência.

Ainda não compreendeu a relação causa e consequência que torna um castigo eficaz mais tarde. Ainda não compreendeu o tempo como fenómeno. Ainda vive totalmente no eterno momento presente. E tudo que lhe damos ou não damos, tudo o que fazemos, a forma como o olhamos, recebemos, acolhemos, tudo é uma espécie de "para sempre" ao qual reage com todas as suas forças... que são suficientemente fortes para deixar um adulto de gatas! Mas suficientemente frágeis para se ficar indefeso às mãos de um adulto que não consiga compreender que as dinâmicas do bebé começam e acabam sempre em si, e no que escolher ser e dar.

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