quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Achei importante referir isto porque...

Achei importante referir isto porque me dá mais descanso ver adultos humildes e que assumam dúvidas do que adultos cheios de certezas, que habitualmente fundamentam as suas certezas no senso comum, que muitas vezes de bom senso não tem nada.
Além de que senso comum é uma forma de dizer, aquilo que cada um recebeu, apreendeu, interpretou e guardou do chamado senso comum, na medida em que existem muitos mundos no mundo, e as pessoas com quem crescemos, que nos rodeiam e que nos imprimem mais influências não são, nem podem ser representativas do "universo de toda a gente" que sería o comum dos sensos...

Os adultos com mais certezas costumam repetir duas possibilidades em simultâneo e/ou alternadamente:
- Ou repetem tudo o que fizeram com eles na infãncia e limitam-se a repetir uma norma, o que habitualmente é indicador de que não foram educados a pensar com a sua cabeça, e sim a repetir fórmulas, a adaptarem-se ao que lhes foi incutido como "o certo".
- Ou resolvem fazer tudo ao contrário, e assentam todas as suas certezas no melindre, no trauma e em velhas questões por resolver.

Os adultos que admitem que estão às escuras e que precisam de aprender tudo de novo, para estarem á altura do desafio, são habitualmente adultos que procuraram saber mais e percebem que há muito a perceber, a aprender, a transformar; e que aquele bebé, aquela criança, pode trazer em si esse potencial de frescura, esse desafio assustador e ao mesmo tempo essa lição de amor incondicional; que é vir de corpinho indefeso, entregar toda a sua primeira infância ao nosso cuidado, sem colocar a hipótese de que nós, podemos ter a nossa cabeça demasiado empanturrada de equívocos de gerações, de compulsões e carências, de imaturidades e intolerâncias.

Um dos desafios mais importantes é o facto de que os filhos rapidamente se tornam uma extensão de nós mesmos, uma espécie de representantes miniatura da nossa capacidade de controlar o nosso mundo e as nossas variáveis. E grande parte do que chamamos "educar" é na realidade um moldar da criança á nossa maneira para que nos dê razões de orgulho, para que não nos envergonhe e com estas duas bitolas já vi muitas crianças a levarem palmadas, castigos, raspanetes, obrigações de mais, actividades demais, e muitas formas de humilhação e desrespeito que nada tinham a ver com criar a criança em amor, mas sim, em tentar fazer dela o nosso bonzai preferido.
E isso fazem pais com ou sem certezas.
Fazem pais inseguros, adultos inseguros. Que não conseguem desenhar essa linha tão difícil de encontrar que separa o mundo das nossas limitações, daquilo que uma criança significa, no seu caminho para adulto, que esteve completo desde o dia 1 e só nós é que não vimos isso.

Achei importante referir isto, porque humildade é a lição nº 1.
Os nossos filhos não são nossos filhos, são filhos da vida.
E só precisam de cuidados básicos e de olhar para o nosso olhar e encontrar a felicidade dos nossos corações por merecermos a presença maravilhosa dessa nossa criaturinha que está ao nosso cuidado.
O que talvez nem sempre seja claro é que o tijolo edificante por excelência, de dentro para fora, como para toda a vida os verdadeiros tijolos serão, é esse olhar.
É desse olhar que começa a construção de um filho forte da vida.
Comer, beber, dormir, brincar, apanhar ar, cuidados médicos... óptimo! Básico e indispensável.
Mas depois há o outro lado, o lado que lida com uma realidade fascinante:

Não começamos a ser pessoa desde que falamos.
Antes de falar, já somos pessoa, já estamos em estruturação. E é nessa altura que somos exasperantes, berramos, choramos, gritamos, não deixamos ninguém dormir, não temos horas para nada, exigimos total dedicação e parecemos fazer de propósito para andar tudo num rodopio à volta da nossa fragilidade.
E é nessa altura que captamos esse olhar, essa calma ou falta dela, esse amor ou essa ambiguidade entre os que nos rodeiam, a "energia" dos lugares que habitamos, sem filtro, sem escolha, sem conceptualização... mas já por inteiro.

Quando vamos crescendo, o nosso corpo foi levado intacto ou mais ou menos, pela primeira infância. Os cuidados que nos dispensaram foram oxalá os necessários.
Mas olhamos para o olhar de um miúdo de 4, ou 5 anos e vemos nesse brilho mais livre, ou nalguma opacidade, se foi criado para o amor e a liberdade.
O resto, são esculturinhas, e um desafio ao nosso respeito pelos miúdos, pelos miúdos que temos, os miúdos que fomos, e aquilo que ser pessoa, realmente significa num mundo melhor que pretendemos criar na nossa geração.

Ser criança

Uma das coisas boas de cuidarmos de uma criança, ou mais; é que nós já fomos crianças. Mas essa é também a parte complicada.
Quando chegamos a adultos a parte criança que ainda nos habita, nem sempre foi saudávelmente cuidada, amada e aceite ao longo do nosso crescimento.
Em grande medida todo o processo de crescimento passa pela anulação e estrangulamento dessa criança que fomos; de forma a que um adulto fosse surgindo dessas formas esculpidas, numa espécie de adaptação da criança às necessidades de um mundo que já existia muito antes de ela ser sequer projecto.


Persiste a dúvida se o fazemos para o bem dos nossos filhos, ou porque achamos que tem de ser, ou porque não conseguimos nem sabemos fazer de outra forma.


Certo é que a criança que fomos, vive cá dentro, sob a forma de rebeldias e condicionamentos, de frescura, espontaneidade, mas também sob a forma de carência e imaturidade.
Quando nos esquecemos do que é ser criança, perdemos a capacidade empática de nos colocarmos no lugar dela e da dificuldade que possa ter em compreender um sistema de regras, condutas, possibilidades, exigências e formas de estar e de ser que muitas vezes ainda nos violentam a nós adultos, quanto mais a uma criança.


Além disso está sobejamente estudada a importância dos primeiros 6 anos na edificação da personalidade, ou na sua profunda desestruturação conforme o caso.
É quando a criança ainda não sabe falar, nem percebe ao certo o que dizemos, que tudo isto se constroi a uma velocidades espantosa.
Todo esse tempo achamos que o que temos a fazer é praticamente apenas orgânico, como dar de comer, por a dormir, dar banho e cuidar de alguma situação de saúde que surja.
Ou seja a nossa relação com o bebé é sobretudo corporal.  E no entanto temos de entender que um bebé humano tem necessidades e capacidades muito mais complexas do que uma qualquer outra cria, com um sistema cognitivo bem mais simples, e para quem o sustento, o sono e cuidados básicos de saúde chegam perfeitamente.
O bebé humano, rapidamente cresce e vai juntando um conjunto de ferramentas que podem servir para o tornar exponencialmente mais forte, mais capaz e mais apto a dar o melhor de si; ou pode ir juntando ferramentas educativas que o normalizam como fazemos com as maçãs e as meloas, que se pretendem todas iguais, da mesma cor, mesmo que para isso elas não recebam sol nem o sabor da terra, e sejam de imediato encarreiradas na mesma máquina produtiva que nos põe, mesmo a nós adultos, tão distantes de nós mesmos, e quantas vezes tão profundamente infelizes.


Dos 0 aos 6 não conta tanto o que se diz, como de resto, se calhar acontece para o resto da vida.
O bebé lê olhos, tons de voz, lê sentimentos básicos, lê temperamentos e atmosferas emocionais.
O bebé lê toque, timbre, lê presença ou ausência.

Ainda não compreendeu a relação causa e consequência que torna um castigo eficaz mais tarde. Ainda não compreendeu o tempo como fenómeno. Ainda vive totalmente no eterno momento presente. E tudo que lhe damos ou não damos, tudo o que fazemos, a forma como o olhamos, recebemos, acolhemos, tudo é uma espécie de "para sempre" ao qual reage com todas as suas forças... que são suficientemente fortes para deixar um adulto de gatas! Mas suficientemente frágeis para se ficar indefeso às mãos de um adulto que não consiga compreender que as dinâmicas do bebé começam e acabam sempre em si, e no que escolher ser e dar.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Quando comecei este blog estava com preguiça

Estava com sono e com preguiça e a pensar:
- "Que sei eu?"


Quando vinha das compras, passei numa paragem de autocarro. Eu vinha carregadíssima, está muito calor e eu estou na minha 32ª semana de gravidez, do meu segundo filho.
Na paragem estava um rapazito, com os seus 5 anos talvez, magrito, limpinho, com ar de reguila. Estava sentado torto, virado para trás a fazer caretas e a ver-se reflectido no vidro da paragem de autocarro.
Quando eu passei carregada, provavelmente vermelha, a bufar de calor, despenteada, e com muito pouco charme, ele transferiu as caretas no vidro para caretas que me fez a mim, um pouco por eu ser uma pessoa, mas não ser ninguém.
A mãe, sentada de costas para mim, estava irritada com a agitação do rapazito, estava irritada porque estava irritada e o rapazito fazia parte dessa irritação e faria sempre, fosse por estar demasiado parado, ou demasiado mexido.
Eu não a vi bem, mas sei que era uma mulher, que estava a tentar, que estava a fazer o melhor possível dentro do que lhe era possível.
O rapazito, era apenas um miúdo de 5 anos, a fazer caretas numa paragem de autocarro. Já nem me lembro bem como era o seu rosto.
A mãe zangou-se, ralhou, puxou, ele deixou-se puxar tornando a sua careta ainda mais careta e nesse esgar desafiou-nos a ambas, fazendo na mímica do seu tamanho de menino, a careta de zanga, cansaço e limite de forças, que eram afinal as nossas.

Vinha ainda com o carrinho das compras a pensar nisto, ou a sentir isto, e achei que não podia ter preguiça.
Aquela careta está por todo o lado, em muitas versões da mesma consciência que repete em muitas vozes e silêncios, que é altura de devolver à infância o seu devido encantamento, para que ela possa perdurar na nossa química, e na nossa imagem de nós mesmos, como esse encantamento apaixonado que devia bastar para definir o que significa ser pessoa e estar vivo.