sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

O corpo e o espírito

A nossa evolução aceitou um pacto com a natureza. Para que pudessemos desenvolver uma complexidade cognitiva sem precedentes, tínhamos de aceitar nascer ainda impreparados.
Nascemos de tal forma impreparados que ficamos espantados a cada nascimento de cada bebé:
- Como é que se pode ser tão pequeno?? Tão indefeso??
Ficamos surpreendidos mesmo ao nascimento do bebé nº 475674893957658489393958567 porque é sempre espantosa a imagem do pequenino corpo nascido ainda sem ver, sem se pôr de pé, sem comer sozinho, sem controle das mãos... as nossas crianças nascem completas, já têm tudo o que faz ser-se pessoa, já têm tudo único e só seu. E no entanto, é como se ainda estivesse tudo em potência, tudo para começar.
Para onde olha o olhar pequenino?
O que percebe destas manchas? Destas luzes? Destes sons e cheiros e toques e sabores?
Que dirá deste planeta onde aterra como um frágil alienígena, sem perceber nada, cheio de necessidades e fragilidades e dependente do que um dia irá chamar-se colo; mas que começa por ser apenas sensação, sensações momento a momento, como se fossem para sempre em cada momento, porque não há ainda tempo, e por isso agora é tudo o que há.
O que aliás é a única verdade, sendo uma das verdades que desaprendemos com o tempo.

Que experiências do bebé não são de corpo? O que não são sentidos? O que é que uma criança recebe sem ser sentido?
Será?
O pudor e a vergonha...
E a culpa e o medo...
Onde terá começado o desrespeito?

Quando me colocam o corpo recém-nascido de um filho nas mãos, entregam-me uma vida, mas não ma dão. Colocam-na ao meu cuidado, mas não ma dão.
Não sou dona desse corpo recém-nascido.
Tenho o meu próprio corpo para cuidar.
E o meu pudor e a minha vergonha para resolver.
E a minha culpa e o meu medo para sanar.
Onde terá começado o desrespeito?

Alimento esse corpinho pequenino de filho santo. Santo em tudo. Nasce tão santo um filho. Tão incrivelmente belo e indefeso.
Depois torra-me a paciência, e tem as atitudes que lhe irei suprimir, terei sem dúvida de gritar, de lhe dar palmadas nas mãos, no rabo, quem sabe na cara. Puxar cabelos, talvez dar-lhe calduços, quando não me ouve, ou me provoca... para que saiba quem manda aqui.
Será que tem mesmo de ser?
Já estou tão cansada de ver isso. É tão insuportável ver adultos tolos a educar futuros adultos tolos, quando ainda são crianças santas, e expressas nas suas asneiras malucas, como nos seus olhares ternos.
O que é que na criança não é sentido?
Onde começa essa autorização para punir, moldar, castigar, assustar, envergonhar, culpar?
Onde terá começado o despeito?

Claro que tem de haver regras.
Claro que o mundo tem perigos.
O medo é necessário, a sobrevivência exige-o como ferramenta.
Mas não haverá mesmo uma forma inteligente de explicar que bagas são boas e que bagas matam? Tem mesmo de ser sempre ao grito? E à patada?

E lá se troca a 9ª fralda suja do dia.
O bebé está lá, naquele corpinho tão, tão pequenino.
Precisa de tudo ainda. Não pode fazer nada sozinho.
Está a oferecer com amor a sua necessidade de sobreviver, e essa oferta não é pequena.
Essa oferta é enorme, a oferta da sobrevivência.
Cria esse equívoco nos pais, sentimos que a sua vida é nossa.

Sería bom que um dia dessemos por ela.
Existem muitas mais de mil regras, rotinas, rituais e normas morais que irão esculpir estes "ser já pessoa".
Vamos impor-lhe um certo e um errado, e dar-lhe a realidade da ambiguidade da escala de cinzas do que existe afinal.
No olhar vago de um recém-nascido mora uma humanidade que esquecemos, corpo e espírito estão ali, num chorinho fácil por um leite que demora, num risinho tolo à imagem de alguém que vem a ser mãe, que vem a ser pai.

Depois vamos querer mostrar como o nosso filho é bem educado, e vamos ensinar-lhe mil e um disparates que nós é que devíamos desaprender.