segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

O sono dos pequeninos

Ontem observei várias mulheres a dar colo à minha bebé, agora com 2 meses.
Engraçado como todos damos colos diferentes.
Uns abanam, mais, menos, mais devagar, mais rápido. Outros estreitam. Outros vão deixando escorregar e de vez enquando voltam a puxar para cima...
Quando um bébe começa a chorar estas formas de pegar costumam tornar-se mais ainda como são.
Quando embalamos um bebé, não estamos apenas a adormecê-lo.
Ocorreu-me hoje que estamos também a cuidar do seu sono do futuro.

A nossa relação com o sono é uma grande novela.
Dormir cedo, tarde, rápido, fácil, pesado, agitado, interrompido... resistir ao sono, viver a tombar de sono. Sei mesmo de quem tome café para dormir.

Como será? Que começa a nossa história com o sono? Como teremos sido embalados?
Abanados, aconchegados, deitados sozinhos a chorar no berço até cansar?
como teremos adormecido e como teremos acordado?

Talvez não exista um processo certo.
Sei que tranquiliza muito um adulto cuidador, ver o seu amor num sono tranquilo, depois de um colinho, ou de um leitinho.
Tranquiliza tanto que dá que pensar... quem faz bem a quem, nesta coisa de cuidar.

Dormimos grande parte do nosso tempo de vida. É importante dormirmos bem. Dormirmos com amor por nós mesmos, mesmo no sono, mesmo no sonho.
Suponho que pode bem acontecer que isso se aprenda neste colinho que embala, esse aprender a amar-se a si mesmo, como se é amado quando somos tão pequeninos, num colinho quentinho, dedicado a ajudar-nos a adormecer.

É como deitarmo-nos cedinho, aconchegar-mo-nos no quentinho, e adormecermos suavemente, no colo da vida que aprendermos a deixarmo-nos viver.

É por isso que isto é importante.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

O corpo e o espírito

A nossa evolução aceitou um pacto com a natureza. Para que pudessemos desenvolver uma complexidade cognitiva sem precedentes, tínhamos de aceitar nascer ainda impreparados.
Nascemos de tal forma impreparados que ficamos espantados a cada nascimento de cada bebé:
- Como é que se pode ser tão pequeno?? Tão indefeso??
Ficamos surpreendidos mesmo ao nascimento do bebé nº 475674893957658489393958567 porque é sempre espantosa a imagem do pequenino corpo nascido ainda sem ver, sem se pôr de pé, sem comer sozinho, sem controle das mãos... as nossas crianças nascem completas, já têm tudo o que faz ser-se pessoa, já têm tudo único e só seu. E no entanto, é como se ainda estivesse tudo em potência, tudo para começar.
Para onde olha o olhar pequenino?
O que percebe destas manchas? Destas luzes? Destes sons e cheiros e toques e sabores?
Que dirá deste planeta onde aterra como um frágil alienígena, sem perceber nada, cheio de necessidades e fragilidades e dependente do que um dia irá chamar-se colo; mas que começa por ser apenas sensação, sensações momento a momento, como se fossem para sempre em cada momento, porque não há ainda tempo, e por isso agora é tudo o que há.
O que aliás é a única verdade, sendo uma das verdades que desaprendemos com o tempo.

Que experiências do bebé não são de corpo? O que não são sentidos? O que é que uma criança recebe sem ser sentido?
Será?
O pudor e a vergonha...
E a culpa e o medo...
Onde terá começado o desrespeito?

Quando me colocam o corpo recém-nascido de um filho nas mãos, entregam-me uma vida, mas não ma dão. Colocam-na ao meu cuidado, mas não ma dão.
Não sou dona desse corpo recém-nascido.
Tenho o meu próprio corpo para cuidar.
E o meu pudor e a minha vergonha para resolver.
E a minha culpa e o meu medo para sanar.
Onde terá começado o desrespeito?

Alimento esse corpinho pequenino de filho santo. Santo em tudo. Nasce tão santo um filho. Tão incrivelmente belo e indefeso.
Depois torra-me a paciência, e tem as atitudes que lhe irei suprimir, terei sem dúvida de gritar, de lhe dar palmadas nas mãos, no rabo, quem sabe na cara. Puxar cabelos, talvez dar-lhe calduços, quando não me ouve, ou me provoca... para que saiba quem manda aqui.
Será que tem mesmo de ser?
Já estou tão cansada de ver isso. É tão insuportável ver adultos tolos a educar futuros adultos tolos, quando ainda são crianças santas, e expressas nas suas asneiras malucas, como nos seus olhares ternos.
O que é que na criança não é sentido?
Onde começa essa autorização para punir, moldar, castigar, assustar, envergonhar, culpar?
Onde terá começado o despeito?

Claro que tem de haver regras.
Claro que o mundo tem perigos.
O medo é necessário, a sobrevivência exige-o como ferramenta.
Mas não haverá mesmo uma forma inteligente de explicar que bagas são boas e que bagas matam? Tem mesmo de ser sempre ao grito? E à patada?

E lá se troca a 9ª fralda suja do dia.
O bebé está lá, naquele corpinho tão, tão pequenino.
Precisa de tudo ainda. Não pode fazer nada sozinho.
Está a oferecer com amor a sua necessidade de sobreviver, e essa oferta não é pequena.
Essa oferta é enorme, a oferta da sobrevivência.
Cria esse equívoco nos pais, sentimos que a sua vida é nossa.

Sería bom que um dia dessemos por ela.
Existem muitas mais de mil regras, rotinas, rituais e normas morais que irão esculpir estes "ser já pessoa".
Vamos impor-lhe um certo e um errado, e dar-lhe a realidade da ambiguidade da escala de cinzas do que existe afinal.
No olhar vago de um recém-nascido mora uma humanidade que esquecemos, corpo e espírito estão ali, num chorinho fácil por um leite que demora, num risinho tolo à imagem de alguém que vem a ser mãe, que vem a ser pai.

Depois vamos querer mostrar como o nosso filho é bem educado, e vamos ensinar-lhe mil e um disparates que nós é que devíamos desaprender.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Achei importante referir isto porque...

Achei importante referir isto porque me dá mais descanso ver adultos humildes e que assumam dúvidas do que adultos cheios de certezas, que habitualmente fundamentam as suas certezas no senso comum, que muitas vezes de bom senso não tem nada.
Além de que senso comum é uma forma de dizer, aquilo que cada um recebeu, apreendeu, interpretou e guardou do chamado senso comum, na medida em que existem muitos mundos no mundo, e as pessoas com quem crescemos, que nos rodeiam e que nos imprimem mais influências não são, nem podem ser representativas do "universo de toda a gente" que sería o comum dos sensos...

Os adultos com mais certezas costumam repetir duas possibilidades em simultâneo e/ou alternadamente:
- Ou repetem tudo o que fizeram com eles na infãncia e limitam-se a repetir uma norma, o que habitualmente é indicador de que não foram educados a pensar com a sua cabeça, e sim a repetir fórmulas, a adaptarem-se ao que lhes foi incutido como "o certo".
- Ou resolvem fazer tudo ao contrário, e assentam todas as suas certezas no melindre, no trauma e em velhas questões por resolver.

Os adultos que admitem que estão às escuras e que precisam de aprender tudo de novo, para estarem á altura do desafio, são habitualmente adultos que procuraram saber mais e percebem que há muito a perceber, a aprender, a transformar; e que aquele bebé, aquela criança, pode trazer em si esse potencial de frescura, esse desafio assustador e ao mesmo tempo essa lição de amor incondicional; que é vir de corpinho indefeso, entregar toda a sua primeira infância ao nosso cuidado, sem colocar a hipótese de que nós, podemos ter a nossa cabeça demasiado empanturrada de equívocos de gerações, de compulsões e carências, de imaturidades e intolerâncias.

Um dos desafios mais importantes é o facto de que os filhos rapidamente se tornam uma extensão de nós mesmos, uma espécie de representantes miniatura da nossa capacidade de controlar o nosso mundo e as nossas variáveis. E grande parte do que chamamos "educar" é na realidade um moldar da criança á nossa maneira para que nos dê razões de orgulho, para que não nos envergonhe e com estas duas bitolas já vi muitas crianças a levarem palmadas, castigos, raspanetes, obrigações de mais, actividades demais, e muitas formas de humilhação e desrespeito que nada tinham a ver com criar a criança em amor, mas sim, em tentar fazer dela o nosso bonzai preferido.
E isso fazem pais com ou sem certezas.
Fazem pais inseguros, adultos inseguros. Que não conseguem desenhar essa linha tão difícil de encontrar que separa o mundo das nossas limitações, daquilo que uma criança significa, no seu caminho para adulto, que esteve completo desde o dia 1 e só nós é que não vimos isso.

Achei importante referir isto, porque humildade é a lição nº 1.
Os nossos filhos não são nossos filhos, são filhos da vida.
E só precisam de cuidados básicos e de olhar para o nosso olhar e encontrar a felicidade dos nossos corações por merecermos a presença maravilhosa dessa nossa criaturinha que está ao nosso cuidado.
O que talvez nem sempre seja claro é que o tijolo edificante por excelência, de dentro para fora, como para toda a vida os verdadeiros tijolos serão, é esse olhar.
É desse olhar que começa a construção de um filho forte da vida.
Comer, beber, dormir, brincar, apanhar ar, cuidados médicos... óptimo! Básico e indispensável.
Mas depois há o outro lado, o lado que lida com uma realidade fascinante:

Não começamos a ser pessoa desde que falamos.
Antes de falar, já somos pessoa, já estamos em estruturação. E é nessa altura que somos exasperantes, berramos, choramos, gritamos, não deixamos ninguém dormir, não temos horas para nada, exigimos total dedicação e parecemos fazer de propósito para andar tudo num rodopio à volta da nossa fragilidade.
E é nessa altura que captamos esse olhar, essa calma ou falta dela, esse amor ou essa ambiguidade entre os que nos rodeiam, a "energia" dos lugares que habitamos, sem filtro, sem escolha, sem conceptualização... mas já por inteiro.

Quando vamos crescendo, o nosso corpo foi levado intacto ou mais ou menos, pela primeira infância. Os cuidados que nos dispensaram foram oxalá os necessários.
Mas olhamos para o olhar de um miúdo de 4, ou 5 anos e vemos nesse brilho mais livre, ou nalguma opacidade, se foi criado para o amor e a liberdade.
O resto, são esculturinhas, e um desafio ao nosso respeito pelos miúdos, pelos miúdos que temos, os miúdos que fomos, e aquilo que ser pessoa, realmente significa num mundo melhor que pretendemos criar na nossa geração.

Ser criança

Uma das coisas boas de cuidarmos de uma criança, ou mais; é que nós já fomos crianças. Mas essa é também a parte complicada.
Quando chegamos a adultos a parte criança que ainda nos habita, nem sempre foi saudávelmente cuidada, amada e aceite ao longo do nosso crescimento.
Em grande medida todo o processo de crescimento passa pela anulação e estrangulamento dessa criança que fomos; de forma a que um adulto fosse surgindo dessas formas esculpidas, numa espécie de adaptação da criança às necessidades de um mundo que já existia muito antes de ela ser sequer projecto.


Persiste a dúvida se o fazemos para o bem dos nossos filhos, ou porque achamos que tem de ser, ou porque não conseguimos nem sabemos fazer de outra forma.


Certo é que a criança que fomos, vive cá dentro, sob a forma de rebeldias e condicionamentos, de frescura, espontaneidade, mas também sob a forma de carência e imaturidade.
Quando nos esquecemos do que é ser criança, perdemos a capacidade empática de nos colocarmos no lugar dela e da dificuldade que possa ter em compreender um sistema de regras, condutas, possibilidades, exigências e formas de estar e de ser que muitas vezes ainda nos violentam a nós adultos, quanto mais a uma criança.


Além disso está sobejamente estudada a importância dos primeiros 6 anos na edificação da personalidade, ou na sua profunda desestruturação conforme o caso.
É quando a criança ainda não sabe falar, nem percebe ao certo o que dizemos, que tudo isto se constroi a uma velocidades espantosa.
Todo esse tempo achamos que o que temos a fazer é praticamente apenas orgânico, como dar de comer, por a dormir, dar banho e cuidar de alguma situação de saúde que surja.
Ou seja a nossa relação com o bebé é sobretudo corporal.  E no entanto temos de entender que um bebé humano tem necessidades e capacidades muito mais complexas do que uma qualquer outra cria, com um sistema cognitivo bem mais simples, e para quem o sustento, o sono e cuidados básicos de saúde chegam perfeitamente.
O bebé humano, rapidamente cresce e vai juntando um conjunto de ferramentas que podem servir para o tornar exponencialmente mais forte, mais capaz e mais apto a dar o melhor de si; ou pode ir juntando ferramentas educativas que o normalizam como fazemos com as maçãs e as meloas, que se pretendem todas iguais, da mesma cor, mesmo que para isso elas não recebam sol nem o sabor da terra, e sejam de imediato encarreiradas na mesma máquina produtiva que nos põe, mesmo a nós adultos, tão distantes de nós mesmos, e quantas vezes tão profundamente infelizes.


Dos 0 aos 6 não conta tanto o que se diz, como de resto, se calhar acontece para o resto da vida.
O bebé lê olhos, tons de voz, lê sentimentos básicos, lê temperamentos e atmosferas emocionais.
O bebé lê toque, timbre, lê presença ou ausência.

Ainda não compreendeu a relação causa e consequência que torna um castigo eficaz mais tarde. Ainda não compreendeu o tempo como fenómeno. Ainda vive totalmente no eterno momento presente. E tudo que lhe damos ou não damos, tudo o que fazemos, a forma como o olhamos, recebemos, acolhemos, tudo é uma espécie de "para sempre" ao qual reage com todas as suas forças... que são suficientemente fortes para deixar um adulto de gatas! Mas suficientemente frágeis para se ficar indefeso às mãos de um adulto que não consiga compreender que as dinâmicas do bebé começam e acabam sempre em si, e no que escolher ser e dar.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Quando comecei este blog estava com preguiça

Estava com sono e com preguiça e a pensar:
- "Que sei eu?"


Quando vinha das compras, passei numa paragem de autocarro. Eu vinha carregadíssima, está muito calor e eu estou na minha 32ª semana de gravidez, do meu segundo filho.
Na paragem estava um rapazito, com os seus 5 anos talvez, magrito, limpinho, com ar de reguila. Estava sentado torto, virado para trás a fazer caretas e a ver-se reflectido no vidro da paragem de autocarro.
Quando eu passei carregada, provavelmente vermelha, a bufar de calor, despenteada, e com muito pouco charme, ele transferiu as caretas no vidro para caretas que me fez a mim, um pouco por eu ser uma pessoa, mas não ser ninguém.
A mãe, sentada de costas para mim, estava irritada com a agitação do rapazito, estava irritada porque estava irritada e o rapazito fazia parte dessa irritação e faria sempre, fosse por estar demasiado parado, ou demasiado mexido.
Eu não a vi bem, mas sei que era uma mulher, que estava a tentar, que estava a fazer o melhor possível dentro do que lhe era possível.
O rapazito, era apenas um miúdo de 5 anos, a fazer caretas numa paragem de autocarro. Já nem me lembro bem como era o seu rosto.
A mãe zangou-se, ralhou, puxou, ele deixou-se puxar tornando a sua careta ainda mais careta e nesse esgar desafiou-nos a ambas, fazendo na mímica do seu tamanho de menino, a careta de zanga, cansaço e limite de forças, que eram afinal as nossas.

Vinha ainda com o carrinho das compras a pensar nisto, ou a sentir isto, e achei que não podia ter preguiça.
Aquela careta está por todo o lado, em muitas versões da mesma consciência que repete em muitas vozes e silêncios, que é altura de devolver à infância o seu devido encantamento, para que ela possa perdurar na nossa química, e na nossa imagem de nós mesmos, como esse encantamento apaixonado que devia bastar para definir o que significa ser pessoa e estar vivo.